Feliz - e único feliz - é quem pode dizer que o Hoje lhe pertence. Quem confiante, pode dizer, Ó amanhã, podes ser negro, pois vivi o dia de Hoje.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

"A CRIANÇA POBRE NÃO É MENOS CAPAZ"


"Os filhos do analfabetismo são alfabetizáveis; não constituem uma população com uma patologia específica que deva ser atendida por sistemas especializados de educação; eles têm o direito a serem respeitados enquanto sujeitos capazes de aprender". Esta afirmação sintetiza, de forma muito simples, as complexas pesquisas da psicolingüista argentina Emília Ferreiro, conhecidas como a psicogênese da língua escrita. Los Sistemas de Escritura en el desarrollo del Niño - de sua autoria e de Ana Teberosky, que reúne os resultados desse estudo que durou três anos - foi publicado pela primeira vez pela Siglo XXI, em 1979. Discípulas do pesquisador suiço Jean Piaget, as autoras partiram da situação educacional da América Latina - em que havia um grande número de crianças que não aprendiam a ler e escrever - para desenvolver uma teoria de como se dava esse processo de aprendizagem. Naqueles anos, como ainda agora, os dados coletados pela Unesco eram alarmantes: 20% da população entre 7 e 12 anos estavam fora da escola; dos que permaneciam na escola, metade não passaria da 3ª série e jamais voltaria à escola e dois terços dos repetentes estavam nos primeiros anos de escolaridade. Esses dados mostravam que havia algum problema - como ainda há - de aprendizagem, mas não era do aluno. Na época, algumas correntes de pensamento chegaram a ver, nesses dados, indicadores de que as crianças pobres eram menos capazes do que as outras. As pesquisadoras argentinas buscaram, então, em contato direto com alunos de várias partes do continente, a resposta para esse fracasso escolar. Juntando os conhecimentos da psicolingüística e a teoria psicológica e epistemológica de Jean Piaget, Emilia e Ana mostraram como a criança constrói diferentes hipóteses sobre o sistema de escrita antes mesmo de chegar a compreender o sistema alfabético. Essas hipóteses se traduzem nas chamadas garatujas, em geral desconsi- deradas como forma de escrita ou, o que é mais grave, rotuladas como erro. Este era - e ainda é - o momento ignorado pela escola, levando os alunos a enfrentarem muitas dificuldades, com conseqüências traduzidas nos dados da Unesco. Além do livro, que no Brasil recebeu o nome de Psicogênese da Língua Escrita, a discussão está presente - entre muitos outros - nos livros Os Filhos do Analfabetismo , Novas Perspectivas sobre o processo de leitura e Escrita (Artes Médicas). Filhos do Analfabetismo resultou de encontro latino-americano realizado, em 1987, no México - onde Emilia leciona hoje - reunindo pessoas comprometidas com a defesa do direito à alfabetização de todas as crianças da América Latina. Lá estiveram educadoras brasileiras como Maria Leila Alves, Ana Maria Kauffman, Esther Grossi, Delia Lerner, Madalena Freire, Marilia Duran e Telma Weisz, que na época desenvolviam projetos provocados pela leitura da psicogênese. Emilia Ferreiro é doutora em psicologia pela Universidade de Genebra, trabalhou com Jean Piaget no Centro Internacional de Epistemologia Genética e é pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México, único país que aceitou recebê-la como exilada da ditadura argentina. No Brasil, foi publicado ainda Alfabetização em Processo (Cortez). Construtivismo? Onde? A escola, como qualquer espaço social, de tempos em tempos passa por modismos. Como numa onda, de repente, todos passam a falar a mesma coisa, a defender os mesmos princípios, mesmo que não consigam colocá-los em prática. Assim foi também com o construtivismo. Vimos escolas de A a Z se auto-intitularem construtivistas. As propagandas diziam: "Temos horário integral, piscina, inglês, construtivismo, capoeira". Nos folhetos e outdoors, as escolas se apresentavam como tal, tornando o discurso completamente homogeneizado, vazio e acabaram transformando o construtivismo em um mero slogan. No Brasil, as primeiras referências ao trabalho realizado por Jean Piaget - matriz do pensamento construtivista - chegaram na década de 60. Na década de 70, a onda construtivista começa com as chamadas escolas experimentais. Mas é a partir da década de 80, após o tecnicismo e a constatação das limitações dos métodos de alfabetização em uso, que as idéias construtivistas ganham força com o trabalho de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. Elas investigaram e descreveram, pela primeira vez, o processo de aquisição da língua escrita. Ser construtivista, ainda hoje, para uma escola, pode significar desde a aplicação criteriosa das idéias de Piaget e de Emília Ferreiro até algum método de ensino que respeite o ritmo de cada aluno. Porém, para muitos educadores, já é consenso que o construtivismo piagetiano não é uma teoria educacional, mas uma teoria epistemológica, ou seja, uma teoria acerca do conhecimento. É sabido também que o construtivismo, ao ser adotado, precisa tornar-se o definidor da totalidade da ação escolar. No entanto, nenhuma teoria de aprendizagem é capaz de dar conta de responder à complexidade do contexto escolar. Então, podemos continuar afirmando que existe uma escola construtivista? Lourdes Atié, socióloga, consultora educacional, ex-colaboradora da Escola da Vila (SP) Uma idéia limitada na prática. A descoberta de Emilia Ferreiro sobre como uma pessoa, vivendo em uma sociedade mais ou menos letrada, aprende a ler e a escrever, tem uma importância muito grande para as ciências da educação. Esta descoberta foi a concretização dos achados piagetianos num campo conceitual particular, a saber, o da alfabetização. Porque Piaget, que se ocupou, conforme suas próprias afirmações, somente do sujeito da inteligência, estabeleceu grandes estágios da construção dos conhecimentos, os quais ele denominou de sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal. Eles dão conta das grandes linhas do pensamento, mas não conseguem elucidar como se aprende um determinado conjunto de conceitos. Tecnicamente, Piaget estabeleceu a macrogênese dos conhecimentos e, ele mesmo, quando homenageado por ocasião dos seus 80 anos, fez um apelo para que outros pesquisadores continuassem seus esforços científicos, estudando as microgêneses de aspectos particulares das aprendizagens. O estudo de como se dão as aprendizagens de um certo domínio da realidade é uma fusão das idéias de Piaget e de Paulo Freire. Piaget esclareceu-nos que o conhecimento é resultante de uma ação internalizada do aprendente para resolver problemas. E Paulo Freire, em sua mais expressiva contribuição às ciências da educação, formulou a antropologia das aprendizagens, mostrando o quanto o aprender está vinculado com a vida e com a cultura. Ora, descobrir, como o fez Emilia Ferreiro, que a caminhada rumo à leitura e à escrita passa por hipóteses oriundas das vivências dos alfabetizandos com materiais escritos e com pessoas que já sabem ler e escrever, é a mais perfeita vinculação entre Piaget e Paulo Freire. Suas hipóteses são formuladas como tentativas de respostas ao problema de explicar como se escreve até ver como as letras se juntam para formar palavras e letras. A contribuição de Emilia Ferreiro permitiu a elaboração da proposta do Geempa de alfabetização, que ilumina, de forma muito nova e especial, esta tarefa escolar de alfabetizar a todos. Tarefa que, aliás, especialmente no Brasil, representa um enorme desafio, em face dos pífios índices de alfabetização de crianças em nossas escolas (ainda em torno de 50% anualmente) e da existência de 19 milhões de analfabetos absolutos acima de 15 anos, fruto desta inoperância alfabetizadora de nosso sistema escolar. A proposta geempiana de alfabetização constitui-se em uma aplicação das idéias de Emilia Ferreiro ao concreto da sala de aula e foi elaborada pelo Geempa (Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação), ONG de Porto Alegre que completará 30 anos de trabalhos científicos em 10 de setembro próximo. Ela é, entretanto, uma produção ousada que se contrapôs à posição da própria Emilia Ferreiro, de que sua descoberta fosse a base de uma proposta didática. Emilia não distingüe proposta didática de métodos convencionais de ensino comprometidos com teorias superadas a respeito do aprender, tais como o behaviorismo, o associacionismo ou o empirismo. Embora sua descoberta, denominada psicogênese da língua escrita, tenha sido um elemento fecundo para embasar a possibilidade de enfrentar uma de nossas maiores lacunas educacionais - o letramento de contingente tão numeroso de analfabetos adultos, os quais se geram a partir da ineficiência do ensino regular e, por sua vez, geram pobreza de ambiente alfabetizador para as crianças em idade própria de ler e de escrever - ela foi brecada em sua aplicação à didática por seu posicionamento equivocado e restritivo. É da didática que nasce o pós-construtivismo como conjunto de idéias para explicar o aprender. O pós-construtivismo é que alicerça as didáticas geempianas, tanto para a alfabetização como para a pós-alfabetização, matemática, história, geografia etc. E, com elas, efeitos extraordinários vêm sendo obtidos, tais como o da alfabetização de 1.000 mulheres adultas em três meses, na cidade de Porto Alegre. Efeitos similares foram produzidos em Horizontina, a cidade gaúcha de Gisele Bundchen, que está zerando o analfabetismo adulto em apenas três etapas de três meses cada. Esther Pillar Grossi deputada federal, doutora em Psicologia da Inteligência pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (Paris). Sem cartilhas mecanicistas. A psicogênese chegou ao Espírito Santo pela via do mestrado em educação da UFES, há mais de 15 anos. Formou-se a partir dali uma rede de grupos de estudos, pesquisas e práticas que envolveu a Universidade, a Escola de Aplicação da UFES, a Secretaria Estadual de Educação e a Prefeitura Municipal de Vitória, num processo, que ainda está vivo, de formação de professores. Não levou muito tempo e o estado se tornou um pólo da Rede Latino- -americana de Alfabetização Integral: foi um dos cinco primeiros estados brasileiros a participar da Rede Brasil de Alfabetização, idealizada e deflagrada por Emilia Ferreiro. A Rede Espírito Santo de Alfabetização foi decisiva na divulgação dos estudos psicogenéticos no estado. Objetivo da rede: mudar a face da escola pública. Mas entre nós, a psicogênese não influenciou apenas a alfabetização de crianças. Programas de educação de adultos, como o que é desenvolvido pelo Núcleo de Educação de Jovens e Adultos do Centro Pedagógico da UFES, já exibem textos de aprendizes que têm a marca das novas idéias. São textos verdadeiros, não artefatos escolares. Neles os autores mostram espontaneidade, autonomia, liberdade para ler o mundo e escrever a sua própria palavra, ainda que com erros. Não a palavra de uma cartilha mecanicista, que tem medo do erro e, para evitá-lo, subjuga a comunicação escrita às sílabas e frases já memorizadas. Essa virada em conceitos, práticas e atitudes tem sido desencadeada pela compreensão do erro como erro construtivo e pelo respeito ao processo de aprendizagem de cada educando, seja ele adulto ou criança. O ba be bi bo bu ainda aparece nas lousas das classes de alfabetização no Espírito Santo. Mas exposições de trabalho de alunos nas escolas mostram textos que têm a cara dos princípios psicogenéticos. É o emergir de uma nova consciência. Euzi Morais A escola é excludente. A publicação e difusão da psicogênese da leitura e da escrita foi uma verdadeira "revolução copérnica" na educação. A Terra é redonda e o ser humano constrói suas aprendizagens de modo distinto de como lhe ensinam. As pesquisas de Emília Ferreiro consubstanciaram a Epistemologia Genética de Jean Piaget em relação à aprendizagem da escrita e da leitura. A partir desses trabalhos, a preocupação dos professores não poderia mais ser só com os métodos escolares de alfabetização: existe um processo de aprendizagem no aluno que precisa ser conhecido e estimulado por quem ensina. A teoria construtivista, muito mais do que um método de educação, o que, inclusive seus autores nunca se propuseram a fazer, indica novas perspectivas entre as relações humanas. Ela ultrapassa as concepções inatistas, pelas quais o ser humano já traz, ao nascer, suas possibilidades de aprendizagem; e as concepções behavioristas, que consideram a mente humana um recipiente vazio para ser preenchido e condicionado pelo meio externo - água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Ela aponta a aprendizagem como um processo de construção na relação sujeito e meio. As teorias sócio-construtivistas, acrescentam a essa relação o entorno social, os outros sujeitos que interagem nesse processo, atribuindo-lhe um caráter mais dialético. Ao conhecer, eu me transformo, me confundo com o objeto aprendido, transformando-o e fazendo cultura. Esses 20 anos da Psicogênese, entretanto, ainda não foram suficientes para modificar significativamente as práticas escolares enraizadas nas concepções inatistas e behavioristas. Os caminhos que Emília Ferreiro apontou, muitas vezes, se transformaram em um modismo pedagógico. É comum encontrarmos, por traz do rótulo construtivista, práticas positivistas que classificam e discriminam os seres humanos. Mais do que adotar esta ou aquela teoria de aprendizagem, é preciso construir uma postura de respeito diante dos diferentes saberes, dos saberes do outro - que nunca serão os nossos - repensando o papel e a função da escola nessa sociedade ainda discriminadora e excludente. Marcia Leite educadora, diretora da Escola Oga Mitá e uma das fundadoras da Escola de Professores. MEC aceita o desafio. Atualmente as propostas do Ministério da Educação, tanto para a educação escolar como para a formação profissional, partem do princípio que todo indivíduo, quando aprende, constrói o seu próprio conhecimento. Isso significa dizer que alunos, professores e formadores são sujeitos ativos no seu processo de aprendizagem e, como tal, devem ser tratados pelas instituições educativas. Um processo de formação - escolar e/ou profissional - pautado nesse pressuposto se orienta por metodologias desafiadoras que privilegiam a construção de conhecimento e a resolução de situações-problema. A perspectiva, hoje consensual, é de que os indivíduos sejam desafiados a desenvolver suas diferentes capacidades, tanto como alunos quanto como profissionais. Os Referenciais e Parâmetros Curriculares Nacionais, o Referencial para a Formação de Professores, o Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado "Parâmetros em Ação" e os demais documentos e projetos elaborados pelo Ministério da Educação estão apoiados nessa perspectiva. Iara Prado, secretária de Ensino Fundamental do MEC. (Jornal do Brasil, 14 de maio de 2000)

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